2.5.16

Moysés Pinto Neto: A micropolítica reacionária e sua infiltração no sistema político

Logo após as eleições de 2014 começou-se a falar da "ofensiva conservadora",entendida como um processo de resposta de setores mais abastados e da classe média diante dos avanços de inclusão social do lulismo a partir da chave da corrupção e da retomada dos valores tradicionais. A descrição ainda abrangeria o ataque "rentista" sobre a economia brasileira, chegando ao ponto de etiquetar na classe média o rentismo e até, no limite, nas "Jornadas de Junho" entendidas como processo de ressurgimento da direita e avanço conservador.
Essa descrição — que recentemente ganhou, meio tardiamente, sua versão cinematográfica — não é de todo falsa, mas apenas muito parcialmente verdadeira. Ela não seria capaz de explicar como a "ofensiva conservadora", em primeiro lugar e apesar dos "movimentos sociais" ultraliberais que empunham suas bandeiras, continua demandando a melhoria da qualidade dos serviços públicos e defendendo a presença do Estado na economia. Longe de uma "revolta dos microempreendedores" por mais liberdade de mercado, como sustenta essa fatia ideológica da análise, tem-se muito mais uma revolta moral contra a corrupção e o desperdício do dinheiro público e um inegável asco por programas de inclusão social que poderiam — na visão equivocada dos manifestantes — estimular o ócio e formar um pacto populista/paternalista de um partido com a população mais pobre. Ou seja, uma centro-direita típica, bem próxima da ideia de conservadorismo. A chave "rentista", portanto, é muito mais adequada — ainda que também insuficiente — para explicar a macropolítica e macroeconomia, sobretudo a clara oposição do mercado financeiro à Dilma assumida mais claramente desde 2014, com a reeleição, mas iniciada desde a adoção da "nova matriz econômica" em 2008.
Se o rentismo não explica o porquê da revolta contra o governo, tampouco a inclusão social parece ser suficiente. É verdade que existe um segmento grande da classe média e da nova classe trabalhadora (os "batalhadores" ou a "classe C") que visualiza nesses programas, como já dito, um estímulo ao ócio e populismo. Mas essas pessoas nunca tiveram outra posição. Em 2006 e 2010 não era diferente. Naquela época, afirmou-se corretamente que o "voto ideológico" (entendido como contraponto ao "voto interessado" ou "voto útil") era da direita. Naquele momento, foi possível enxergar que o tamanho da direita ideológica não é maior que o da esquerda ideológica, flutuando a maioria do eleitorado por noções mais simples e menos politizadas como, por exemplo, a melhoria da qualidade de vida. O Plano Real resolveu o problema da inflação, ponto para o PSDB. O lulismo promoveu a melhoria da economia, com crescimento e inclusão social, ponto para o PT. Não se trata do determinismo econômico que insiste em se tomar como único parâmetro de análise repetindo o mantra “it’s economy, stupid”, mas simplesmente de perceber que a maioria não se orienta por critérios rígidos de orientação política. A explicação para a capitalização atual do conservadorismo, com ampla infiltração no sistema político, tem que ultrapassar esse ressentimento de classe que serviu durante os últimos dez anos — numa estratégia mais ou menos suicida — para que o PT se autoglorificasse pelos avanços sociais e colocasse nos seus inimigos o selo de "a pior gente possível". O recente protagonismo de Jair Bolsonaro explica-se mais ou menos por aí. O "desejo de Bolsonaro" é a possibilidade de identificar o adversário como o pior da política — no caso, o mais descarado e odioso fascismo — e jogar o problema da crescente oposição para o lado da moral. Se isso funcionou durante um bom tempo, e a proliferação de discursos de chauvinismo e self-hate da classe média "intelectualizada" é um indicativo que de fato funcionou, hoje o esgotamento se mostra no fato que mesmo a escolha do inimigo mais polarizado e caricato não tem sido suficiente para evitar o descontentamento. Tem gerado, aliás, uma profecia-que-se-cumpre-a-si-mesma no qual, diante do extremismo na escolha, joga-se o opositor para a situação de aceitar a identificação com essa figura espúria.
O crescimento do reacionarismo não teria sido possível sem que estivesse enraizado fortemente na sociedade, naquilo que os políticos chamam de "base social". Ou seja, contrariando ou complementando essas análises que terminam numa grande epopeia do Bem contra o Mal, é preciso embaralhar um pouco mais as cartas para compreender como houve essa infiltração que hoje é representada pela hegemonia absoluta de Eduardo Cunha, a arquissíntese de um Brasil detestável, mas bem vivo entre nós. Continuo com a ideia que — mais do que frases de efeito como "não passarão!" ou textos carregados de adjetivos e construções absurdas para "motivar" — o que mais precisamos é de pensamento, ou seja, entender como chegamos a esse ponto para então nos situarmos com clareza politicamente. Assim, temos que detectar na cartografia do social onde essas forças conseguiram se viralizar e quais foram as válvulas que possibilitam sua infiltração no sistema político. Uma doença grave e repulsiva, como a própria figura de Eduardo Cunha, não deve obstaculizar um diagnóstico racional sobre suas causas. Isso significa olhar para um campo que normalmente os intelectuais uspianos desprezam, mas que foi absolutamente decisivo: a micropolítica.
Se observarmos, em linhas gerais e sem nenhuma pretensão "científica", o perfil desses deputados que horrorizaram a população na votação doimpeachment, vamos perceber o crescimento social de dois campos e a manutenção de um terceiro. O campo que se mantém é o do católico conservador, provavelmente influente na sua cidade natal como médico ou advogado, que se alinha com os valores tradicionais da classe média e, por consequência, é visceralmente anticomunista (associando, obviamente, o PT ao comunismo). Nada de novo aqui: esse segmento jamais deixou de existir e constitui o tradicional campo da direita política no Congresso. Em alguns casos, esse tradicional conservador ganha novos ares, mais "moderno" e "liberal", só que em sentido estritamente econômico. Ele alia-se ao modo norte-americano de fazer política, enveredando pelo macartismo e inspirado nos think tanks pró-mercado, mas em termos morais continua alinhado à "família brasileira", entendida como arranjo monogâmico, patriarcal e heteronormativo inspirado em valores religiosos cristãos.
O que vimos, no entanto, vai além disso. Temos agora uma ampla gama de deputados alinhados com as Igrejas neopentecostais, que são as responsáveis pelo maior "trabalho de base" no Brasil desde a década de 80 do século passado. Há uma imensa variação entre essas Igrejas hoje em dia no Brasil, mas pode-se dizer que via de regras aquelas que se interessam em ocupar espaços políticos institucionais estão marcadas por um certo ethos específico. A combinação entre o rigor e a disciplina moral, que possibilitam ao "batalhador" uma estabilidade em um contexto social desorganizado, como mostra Jessé Souza em seu trabalho sobre os "Batalhadores Brasileiros", somada à introdução da "teologia da prosperidade" — que enfatiza valores pró-mercado e coloca o "espírito do capitalismo" no âmbito da periferia— e ao componente mágico que combina a dádiva (a possibilidade de doar, do dispêndio sem retribuição, mas com valor social positivo no dízimo), a economia do luxo (com a ostentação, por exemplo, do Templo de Salomão, no qual estiveram presentes na inauguração, lembremos, Dilma e Alckmin) e o sincretismo vedado pelo cristianismo mais "teologizado" da Igreja Católica (com exorcismos, curas milagrosas, promessas impossíveis) possibilitam não apenas o "encantamento" de um mundo devastado pela pobreza e violência, mas um processo de individuação que configura uma forma-de-vida bem estruturada. Ao mesmo tempo, as lideranças pastorais tornam-se cada vez mais poderosas, independente das suas intenções serem genuínas ou nem tanto. Não por acaso o "poder pastoral" foi uma das formas investigadas por Foucault.
Por outro lado, podemos observar igualmente um setor que se alavanca nos últimos anos, identificados com valores também conservadores, mas com um certo ar agroboy, o Brasil country identificado com o "sertanejo universitário" que Viveiros de Castro vem descrevendo, mais ou menos sozinho, como um setor que avança cada vez mais no campo brasileiro:
Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.
Os avanços desses setores foram amplamente subestimados por um erro metodológico-cognitivo da nossa esquerda: sua síndrome de gigantisco. O Brasil, nesse imaginário, é o "Brasil Grande", tão grande que consegue suportar a convivência das ideias de Kátia Abreu sobre a distribuição de terras, direitos indígenas, agrotóxicos, transgênicos e monoculturas sem que isso supostamente prejudique o "grande projeto" de inclusão social. Da mesma maneira, no Brasil dos "movimentos sociais" é normal conviver com fundamentalistas que pensam a democracia como teocracia, repudiando a laicidade do Estado e o respeito aos direitos fundamentais das pessoas que não compartilham seu credo religioso. A sobreposição da "maioria cristã" é entendida como a possibilidade de impor parâmetros pautados unicamente na religião — e no seu compartilhamento majoritário — sem respeito às minorias políticas que não compartilham esses valores e têm direito a ser respeitadas como cidadãs da mesma estatura (isso é tão óbvio que até me dói escrever).
A equivalência entre cidadania e poder de consumo, insistentemente repetida pela própria Presidenta Dilma Rousseff, despolitizou o próprio cerne da política, fazendo aquilo que a própria esquerda acadêmica critica no "neoliberalismo": tornar a economia uma narrativa absoluta, retirando a importância da política. Não é difícil perceber nisso o eterno ponto de encontro entre alguns setores do marxismo, do desenvolvimentismo e do neoliberalismo: sua ênfase absoluta na macroeconomia e desconsideração do nível micropolítico, das formas de subjetivação e do questionamento dos fins propriamente ditos a que tal "progresso econômico" irá nos conduzir. Por tudo isso, a esquerda governista considerou irrelevante enfrentar essas forças políticas, rifando seus aliados minoritários, gradualmente alimentando até a aliança com os reacionários. Nesse processo, o projeto político da esquerda foi gradualmente se paralisando em face dos constantes vetos reacionários até o ponto em que simplesmente desapareceu, reduzindo-se a um plano econômico baseado no crescimento induzido pelos "supercampeões nacionais".
Enquanto isso, e aqui vai a discordância com o citado Jessé Souza, a melhor explicação para a infiltração dessas duas novas formas de subjetivação na política institucional é mesmo a da patrimonialismo. A "válvula" que possibilitou esse crescimento é a "governabilidade" instituída no pacto pemedebista com o "Centrão" explorada por Marcos Nobre no seu "Imobilismo em Movimento". Nobre, porém, analisa apenas (e sem nenhum demérito à demarcação) o jogo da Realpolitik institucional, sem focar nas formas de subjetivação que compõem as bancadas agora definidas no arranjo "Bala, Boi e Bíblia", justamente o que há de mais reacionário no Brasil. Se ainda seguirmos Marcos Nobre ao entender as revoltas de Junho de 2013 comomanifestações "antipemedebistas", podemos compreender o realinhamento das forças políticas como uma combinação entre a estratégia de ocupação patrimonialista do "baixo clero", baseada no fisiologismo descarado até o nível criminal, e a forma-de-subjetivação reacionária que garante uma "base social" a tais parlamentares. O patrimonialismo e o personalismo servem de válvulas para a infiltração desses políticos corruptos e cínicos que se cacifam por meio de valores conservadores e pautas reacionárias, combinando o enfraquecimento da democracia com o antirepublicanismo e desprezo aos direitos fundamentais. A figura de Eduardo Cunha tem de ser entendida na sua força pela combinação desses dois elementos: de um lado, ele possibilita a passagem de pautas reacionárias que popularizam os deputados nas suas bases com subjetivação conservadora; de outro, ele representa, como um "Presidente do Sindicato", os parlamentares do baixo clero nos seus interesses mais mesquinhos que, diante do enfraquecimento do governo, podem passar com mais facilidade.
Se tudo isso é verdade, podemos visualizar que a guerra macropolítica é também um reflexo da micropolítica. O que 2013 afirmou, ao menos nos seus momentos iniciais, era a progressiva coesão (hoje esfacelada) de composições heterogêneas entre novas formas-de-vida, dos movimentos indígenas, passando pelo feminismo e movimento negro, até os movimentos por outro modelo urbano e político. O florescimento dessas lutas que, naquele momento, eram combinadas em arranjos heterogêneos, numa composição de múltiplas vozes em parte devedora dos próprios sucessos do lulismo (pela inclusão econômica e ações afirmativas, p.ex.), é que despertou uma reação agressiva do que há de mais reacionário no Brasil. Por outro lado, também o protesto por democratização do sistema político, com a demanda contra a corrupção e pelo aprofundamento da democracia que caracterizou aquele momento pode ser interpretada como uma ameaça ao status quo dessas bancadas fisiológicas e patrimonialistas, exigindo uma posição drástica — eleger uma "figura das sombras" para a Presidência da Câmara — a fim de paralisar esse processo.
Em outros termos, o que essa composição reacionária do Congresso representa é uma reação dialética ao avanço micropolítico de outras formas de subjetivação que também utilizou, e até com muito maior viralização, estratégias micropolíticas, conseguindo promover a constituição de uma base social sólida que se afirmou na lacuna despolitizante da "inclusão pelo consumo" promovida pelo ciclo lulista. Não é contra essa inclusão que se afirma, mas como sua contraparte política. Ao mesmo tempo, compõe um bloco de resistência agora mais coeso contra a real ameaça que o sistema político passou em 2013, transitando para a superfície do sistema um perfil que antes preferia atuar nas sombras, por meio das válvulas do patrimonialismo e da governabilidade.

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