2.6.16

A MARCHA DA RECOLONIZAÇÃO DO BRASIL, por Fábio de Oliveira Ribeiro

por Fábio de Oliveira Ribeiro -  Vi primeiro AQUI 
reprodução da capa da revista PIAUÍ de junho/2016
A chegada de Michel Temer ao poder através de um golpe de estado tem despertado várias críticas dentro e fora do Brasil. Faltam-lhe quatro coisas: sensibilidade social, compromisso com o projeto de Brasil eleito junto com Dilma Rousseff, consistência nas ações administrativas e, principalmente, bom senso para não nomear bandidos para cargos importantes.
A chegada de José Serra para o Ministério das Relações Exteriores é preocupante. Serra não tem formação ou experiência diplomática. Ele é um inimigo declarado do monopólio brasileiro da exploração do petróleo em nosso território e mar costeiro. Além disto, documentos liberados pelo WikiLeakes provam que o senador paulista é um preposto da Chevron no Brasil.
Vários analistas alertam para uma recolonização do Brasil. Prova disto seria a facilitação da aquisição de terras por norte-americanos e europeus. A desnacionalização do petróleo equivaleria à uma verdadeira norte-americazação do litoral brasileiro. As riquezas que deveriam enriquecer o interior do país serão transferidas para os EUA restabelecendo uma dicotomia litoral-interior parecida com aquela que havia nos séculos XVI e XVII.
Este movimento é o inverso daquele que foi promovido pelo Regime Militar. A descolonização do Brasil foi objeto de estudo de Constantino Inanni. Em seu livro o ilustre intelectual afirma que:
“Nos últimos meses, o café apenas tem produzido o indispensável para cobrir os gastos com a importação de combustíveis e trigo, e em alguns círculos já se delineia algum pânico quando se pensa o que será da nossa economia se grandes safras de 1955 colocarem os países produtores à mercê do consumidor norte-americano ou dos especuladores da Bolsa de New York.” (Descolonização em Marcha, Constantino Ianni, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, pág.48)
Na época referida no texto o Brasil importava petróleo e derivados. Para fazer isto, dependia dos dólares do seu principal produto de exportação. Mas o país dependia de um problema: o preço do produto não dependia apenas dos brasileiros. Os especuladores na Bolsa de New York podiam afetar a economia brasileira de duas maneiras: abaixando o preço do café e elevando o do petróleo e derivados.
Superamos aquele cenário. O Brasil está se transformando num país exportador de petróleo. Apesar de não conseguir fixar o preço do produto, a Petrobras pode influenciar o mercado racionalizando a velocidade com que vai explorar e exporta o Pré-Sal. Mas isto não poderá ser feito se o Brasil mudar a legislação. Se as petrolíferas norte-americanas chegarem ao Pré-Sal haverá um aumento do consumo do produto nos EUA.
O preço do petróleo pode até ficar estável, mas haverá uma redução drástica no valor de mercado da Petrobras em razão da empresa ter perdido o monopólio da exploração do Pré-Sal. Não só isto, a companhia terá que disputar espaço político com concorrentes norte-americanos agressivos acostumados a subornar políticos como José Serra. Uma nova fonte de instabilidade política fincará os pés no Brasil e dificilmente conseguiremos mudar novamente a legislação sem uma guerra externa.
Não bastasse tudo isto, a redução da rentabilidade do petróleo para o Brasil acarretará uma redução nas expectativas de redistribuição de renda. Após ser congelada, a estrutura social do Brasil voltará a ser parecida com aquela que existia na década de 1950 com uma diferença. As flutuações nos preços internacionais do petróleo podem gerar desabastecimento interno, pois um país que tem maior demanda e é mais rico (EUA) certamente será considerado um destino mais seguro para o petróleo prospectado no Brasil pelas petrolíferas norte-americanas. Resumindo: podemos voltar a sofrer desabastecimento de combustíveis apesar de sermos exportadores de petróleo.
Enquanto a Rússia se prepara para controlar o preço do seu petróleo, o Brasil caminha no sentido inverso. Deixará aos estrangeiros a possibilidade de regular em que velocidade o petróleo brasileiro será prospectado e onde ele será consumido.
Ao estudar a luta contra as estruturas coloniais, Ianni citou um argumento extremamente relevante utilizado por Antônio Carrillo Flôres, Embaixador do México em Washington.
“O argumento é simples. 'No passado, quando o mundo enfrentou horas de perigo, encontraram-se fórmulas de perfeita eficácia para evitar altas excessivas nos preços das matérias-primas, mediante ação conjunta das grandes nações industriais. Parece-nos evidente que, se é possível evitar altas excessivas é possível evitar baixas excessivas.' Essas palavras singelas constituem verdadeira denúncia do egoísmo das nações altamente industrializadas que sacrificam aos seus os interesses de países produtores e exportadores de matérias-primas, que como é sabido, constituem a base da economia nacional.” (Descolonização em Marcha, Constantino Ianni, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, pág. 134)
Ao se transformar em exportador de petróleo nosso país já está sujeito às flutuações de preço provocadas artificialmente pelos países que importam o produto. Se deixar as petrolíferas dos EUA explorar seu petróleo pagando uma ninharia à União, o Brasil perderá uma excelente oportunidade para escapar da armadilha colonial. A única maneira de fazer isto é desenvolver aqui mesmo os conhecimentos, tecnologias, materiais e produtos capazes de serem exportados com grande valor agregado.
O financiamento da educação e da cultura pelo Pré-Sal deveria ser considerado estratégico. A descolonização do Brasil passa necessariamente pela difusão da percepção de que os estrangeiros nunca cuidarão melhor de nós do que nós mesmos. No fundo, um nacionalismo moderado é absolutamente essencial à qualquer país que pretenda tirar proveito de seus recursos naturais. No fundo foi isto o que disse o diplomata mexicano citado por Constantino Ianni.
A questão colocada ao país pelo governo ilegítimo que chegou ao poder é crucial. Que país nós queremos daqui a 10 anos? Aqueles que chegaram ao poder Michel Temer parecem odiar o Brasil. Este é certamente o caso de José Serra, homem que tudo faz para atender primeiro os interesses dos norte-americanos e sempre desdenha os interesses dos próprios eleitores que deram a ele o cargo de senador.
Uma economia nacional não deve ficar a mercê das ações predatórias do mercado. Os exemplos que se multiplica, desde 2008 deveriam servir de advertência para o novo governo. Michel Temer, contudo, não tem sensibilidade social. Ele prefere ver os brasileiros morando em favelas, morrendo de fome e sem educação universitária e assistência médica. Tudo que ele e José Serra pretendem fazer é atender o mercado. Ambos agem como se o próprio mercado fosse atender as necessidades sociais dos brasileiros e não os interesses mesquinhos daqueles que já lucraram trilhões reduzindo o padrão de vida dos trabalhadores norte-americanos e dos europeus.
A marcha da recolonização iniciada por Michel Temer deve, pois, ser combatida. Mas para fazer isto precisamos compreender melhor como e porque a descolonização era um ideal defendido nos anos 1950, 1960 e 1970. Quase ao final do seu livro, Constantino Ianni faz uma afirmação que me parece bastante pertinente:
“A situação internacional continua a caracterizar-se, na sua fase atual, pelos conflitos agudos nas zonas coloniais, o que, no entanto, não reduz a importância da competição entre as grandes potências no plano diplomático e econômico.” (Descolonização em Marcha, Constantino Ianni, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1972, pág. 228)
No plano internacional, é evidente que os EUA estão perdendo espaço econômico para a China. As ações de Washington na Europa evidenciam o temor norte-americano produzido pelo renascimento da Rússia como potência militar global. Uma aliança econômica e militar entre estas duas potências seria desastrosa para os norte-americanos, razão pela qual eles lutam de todas as maneiras para destruir o BRICS. José Serra prometeu retirar nosso país do bloco. Ninguém sabe quanto ele ganhará fazendo isto.
A campanha suja promovida contra Dilma Rousseff pela imprensa brasileira privada que lucra fazendo propaganda dos produtos das empresas norte-americanas instaladas no país – campanha esta que provavelmente foi orquestrada pela Embaixada dos EUA como ocorreu de 1962 a 1964 – e seu resultado não deixam dúvidas. Nós estamos já estamos numa zona colonial em conflito. E o conflito será ainda mais agudo se houver resistência violenta ao novo governo que pretende submeter totalmente o Brasil aos interesses do mercado, transformando nosso território em zona livre e desregulada em detrimento dos direitos e dos interesses da maioria da população brasileira.
A recolonização do Brasil já está em curso a algum tempo. O golpe contra Dilma Rousseff é apenas o ápice de um processo que já vinha ocorrendo há mais de uma década. A submissão completa do Brasil aos interesses mesquinhos dos EUA tem relação, sem dúvida alguma, com a assustadora e desenfreada expansão dos cultos evangélicos no país. Alguns destes cultos são mais ou menos financiados por norte-americanos. Como os índios dos séculos XVI e XVII, os brasileiros estão sendo ideologicamente domesticados para acreditar que os novos invasores (financistas norte-americanos e europeus) cuidarão melhor de Pindorama do que aqueles que aqueles que habitam o Brasil.
A substituição da religião católica pelo evangelismo pró-mercado está provocando a destruição da nossa identidade, da nossa cultura, do nosso Estado e da soberania do Brasil. Mas esta é uma questão sobre a qual a CNBB deve refletir. De qualquer maneira, não foi por acaso que Eduardo Cunha, um pastor evangélico desonesto e procurado pela Justiça, admitiu o absurdo pedido de Impedimento feito contra Dilma Rousseff e comandou a aprovação deste pelos parlamentares evangélicos e seus aliados ocasionais (os deputados bandidos). A recolonização financeira e religiosa do Brasil esta na origem do golpe de estado que ameaça o futuro do país e que pretende revogar todas as conquistas sociais dos governos Lula e Dilma.

31.5.16

Fora Temer! Dia 10 de junho - Dia Nacional de Mobilização contra o golpe


Com menos de um mês da aplicação do golpe, a conta já chegou aos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. O presidente ilegítimo e golpista, Michel Temer, não esconde o que estava por trás do afastamento ilegal da presidenta Dilma Rousseff: reforma da previdência, com arrocho nos direitos dos trabalhadores, desvinculação do orçamento da educação e saúde, suspensão de programas sociais como Minha Casa, Minha Vida, FIES, PROUNI e PRONATEC, criminalização e perseguição dos movimentos sociais. 

Os escândalos de corrupção envolvendo Aécio Neves, Temer e  Eduardo Cunha demonstram que os chefes do golpe arquitetaram toda movimentação para derrubar a Presidenta Dilma, sem crime de responsabilidade, para  parar as investigações da Lava –Jato, usurpar o poder e aplicar o projeto mais neoliberal da história do Brasil. 

Não reconhecemos o governo golpista, Temer não governará. A rua já é o nosso lugar de resistência, as ocupações são os comitês de resistência, e a luta o nosso lema. Não temos nada a Temer. Por isso, convocamos toda população brasileira, que preza pela democracia e que não reconhece o governo golpista, a ocuparem as ruas e avenidas no dia Nacional de Mobilização pelo “Fora Temer”, no dia 10 de junho de 2016. Seremos milhões em todo o Brasil.  
 


Frente Povo Sem Medo / Fotos: CUT; ‏@MidiaNINJA; Paulo Pinto/Agência PT e Guilherme Santos/Sul21

26.5.16

O PREÇO DO PODER QUE NOS GOVERNA, por Sérgio Saraiva


por Sérgio Saraiva (vi primeiro AQUI)
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Artigo primeiro de nossa Constituição de 1988. Expressa o conceito que dá suporte a organização sociopolítica do ocidente pelo menos desde 1789.
Decorre de outro conceito ainda maior: o de que todo ser humano nasce igual em direitos. Da declaração dos direitos do homem.
E nada expressa mais esse conceito do que o voto. Diante da urna eleitoral todos os homens são iguais.
Não o são desde que nascem, porque não são iguais o homem que nasce em uma maternidade com toda a assistência necessária prestada à sua mãe e o filho de uma mãe que pare em um banheiro público. Não serão iguais ao morrer, um aos quatorze anos baleado pela polícia e outro após os noventa cercado dos cuidados finais; mesmo seus restos mortais terão destinos diferentes. Escusado está exemplificar as diferenças durante a vida desses dois homens.
Exceto diante da urna eleitoral. Ali, cada um valerá um voto e estará igualmente decidindo o futuro de sua nação e o de seu ser cidadão nessa mesma nação.
Não nos iludamos, toda eleição é uma batalha metafórica de vida ou morte dentro da nossa eterna luta de classes.
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Não nos iludamos tratar-se de um axioma. Ou a democracia ser uma condição natural. È antes e sempre uma conquista provisoriamente mantida. Chegar a ela custou a cabeça de reis mais de uma vez, desde o século 17. E muito sangue cidadão.
 “Existem apenas dois partidos na França: o povo e seus inimigos. Temos que exterminar esses vilões miseráveis que estão eternamente conspirando contra os direitos do homem… Um rio de sangue que separe a França de seus inimigos” – Robespierre, morto em 1794.
Quantos rios de sangue cortaram o território da democracia, desde então?
No Brasil vivemos essa ilusão e outras. As ilusões do homem cordial, da democracia racial, da convivência harmônica entre a casa grande e a senzala. A ilusão do déspota esclarecido.
A democracia que vivemos Brasil até outubro de 2014 teve custos. Custou muito povo nas ruas e vários cadáveres multilados e sem a devida sepultura. Teve que esperar, no entanto, pela decrepitude de um modelo de força que vigorava na América Latina para então se impor. A democracia, naquele momento, pareceu ser a tal condição natural. Não o era. Vemos hoje.
Vemos hoje ser reescrito artigo 1º da nossa constituição:
“Todo o poder emana do poder, que o exerce por si próprio e nos seus próprios termos”.
Esta sim uma condição natural.
Não nos iludamos, estão aí o poder econômico, o poder de manipulação da informação e o poder de coerção armada a se unir e tomar nos dentes os tais freios e contrapesos dos poderes democráticos constitucionais.
54 milhões de votos cidadãos nada valem. O poder vale por si.
Hoje, após as revelações dos grampos de Romero Jucá não há como negar a conspiração desses poderes para solapar o poder democrático.
O impeachment da presidente democraticamente eleita, uma farsa. Uma conspirata.
As operações da Polícia Federal, do Ministério Público e do tribunal de exceção de Curitiba, tendo o combate à corrupção como mote, visaram colocar sob controle de um grupo os poderes constitucionais Executivo e Legislativo. O Judiciário, último bastião constitucional, acoelhado pelos que dentre os seus conspiradores têm a ousadia dos canalhas.
O golpe consumado, na substituição do poder eleito pelo poder rejeitado nas urnas. Um títere na figura presidencial.
“Todo o poder emana do poder, que o exerce por si próprio e nos seus próprios termos”.
“Corruptos” presos, só os que não interessam ao poder. Corruptos úteis não serão molestados, enquanto se mostrarem úteis. Viverão, no entanto, sob a espada de Dâmocles, para que continuem úteis e utilizáveis.
A riqueza produzida por um povo, o butim dos vencedores. A miséria aos miseráveis. Outra condição natural.
A soberania nacional hipotecada a um poder estrangeiro maior que jamais se pejou de defender seus interesses defendendo tiranos colaboracionistas.
A hipocrisia nas folhas dos jornais e nas telas cotidianas como o novo ópio do povo.
E um povo que crê em ilusões crendo na maior delas, que por alguma condição natural que jamais existiu em parte alguma do mundo ou em qualquer tempo, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Não no iludamos, hoje, no Brasil, “todo o poder emana do poder, que o exerce por si próprio e nos seus próprios termos”.
E assim será enquanto o poder democrático não se confrontar a ele.
E haverá custos.
Que as cabeças rachadas dos nossos estudantes secundarista em luta e de seus professores, não nos permitam ilusões.
A manutenção da mínima igualdade entre os homens sempre custou um rio de sangue.
O preço está posto pelo poder que hoje nos governa.

PS1: as eleições municipais de 2016 serão, mais que um termômetro, uma chave que fechará na razão direta da viabilização do PT. Às favas os pruridos da consciência.
PS2: PS2: “Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!” – La Marseillaise cantada por Mano Brow já está disponível na Oficina de Concertos Gerais e Poesia.

2.5.16

Moysés Pinto Neto: A micropolítica reacionária e sua infiltração no sistema político

Logo após as eleições de 2014 começou-se a falar da "ofensiva conservadora",entendida como um processo de resposta de setores mais abastados e da classe média diante dos avanços de inclusão social do lulismo a partir da chave da corrupção e da retomada dos valores tradicionais. A descrição ainda abrangeria o ataque "rentista" sobre a economia brasileira, chegando ao ponto de etiquetar na classe média o rentismo e até, no limite, nas "Jornadas de Junho" entendidas como processo de ressurgimento da direita e avanço conservador.
Essa descrição — que recentemente ganhou, meio tardiamente, sua versão cinematográfica — não é de todo falsa, mas apenas muito parcialmente verdadeira. Ela não seria capaz de explicar como a "ofensiva conservadora", em primeiro lugar e apesar dos "movimentos sociais" ultraliberais que empunham suas bandeiras, continua demandando a melhoria da qualidade dos serviços públicos e defendendo a presença do Estado na economia. Longe de uma "revolta dos microempreendedores" por mais liberdade de mercado, como sustenta essa fatia ideológica da análise, tem-se muito mais uma revolta moral contra a corrupção e o desperdício do dinheiro público e um inegável asco por programas de inclusão social que poderiam — na visão equivocada dos manifestantes — estimular o ócio e formar um pacto populista/paternalista de um partido com a população mais pobre. Ou seja, uma centro-direita típica, bem próxima da ideia de conservadorismo. A chave "rentista", portanto, é muito mais adequada — ainda que também insuficiente — para explicar a macropolítica e macroeconomia, sobretudo a clara oposição do mercado financeiro à Dilma assumida mais claramente desde 2014, com a reeleição, mas iniciada desde a adoção da "nova matriz econômica" em 2008.
Se o rentismo não explica o porquê da revolta contra o governo, tampouco a inclusão social parece ser suficiente. É verdade que existe um segmento grande da classe média e da nova classe trabalhadora (os "batalhadores" ou a "classe C") que visualiza nesses programas, como já dito, um estímulo ao ócio e populismo. Mas essas pessoas nunca tiveram outra posição. Em 2006 e 2010 não era diferente. Naquela época, afirmou-se corretamente que o "voto ideológico" (entendido como contraponto ao "voto interessado" ou "voto útil") era da direita. Naquele momento, foi possível enxergar que o tamanho da direita ideológica não é maior que o da esquerda ideológica, flutuando a maioria do eleitorado por noções mais simples e menos politizadas como, por exemplo, a melhoria da qualidade de vida. O Plano Real resolveu o problema da inflação, ponto para o PSDB. O lulismo promoveu a melhoria da economia, com crescimento e inclusão social, ponto para o PT. Não se trata do determinismo econômico que insiste em se tomar como único parâmetro de análise repetindo o mantra “it’s economy, stupid”, mas simplesmente de perceber que a maioria não se orienta por critérios rígidos de orientação política. A explicação para a capitalização atual do conservadorismo, com ampla infiltração no sistema político, tem que ultrapassar esse ressentimento de classe que serviu durante os últimos dez anos — numa estratégia mais ou menos suicida — para que o PT se autoglorificasse pelos avanços sociais e colocasse nos seus inimigos o selo de "a pior gente possível". O recente protagonismo de Jair Bolsonaro explica-se mais ou menos por aí. O "desejo de Bolsonaro" é a possibilidade de identificar o adversário como o pior da política — no caso, o mais descarado e odioso fascismo — e jogar o problema da crescente oposição para o lado da moral. Se isso funcionou durante um bom tempo, e a proliferação de discursos de chauvinismo e self-hate da classe média "intelectualizada" é um indicativo que de fato funcionou, hoje o esgotamento se mostra no fato que mesmo a escolha do inimigo mais polarizado e caricato não tem sido suficiente para evitar o descontentamento. Tem gerado, aliás, uma profecia-que-se-cumpre-a-si-mesma no qual, diante do extremismo na escolha, joga-se o opositor para a situação de aceitar a identificação com essa figura espúria.
O crescimento do reacionarismo não teria sido possível sem que estivesse enraizado fortemente na sociedade, naquilo que os políticos chamam de "base social". Ou seja, contrariando ou complementando essas análises que terminam numa grande epopeia do Bem contra o Mal, é preciso embaralhar um pouco mais as cartas para compreender como houve essa infiltração que hoje é representada pela hegemonia absoluta de Eduardo Cunha, a arquissíntese de um Brasil detestável, mas bem vivo entre nós. Continuo com a ideia que — mais do que frases de efeito como "não passarão!" ou textos carregados de adjetivos e construções absurdas para "motivar" — o que mais precisamos é de pensamento, ou seja, entender como chegamos a esse ponto para então nos situarmos com clareza politicamente. Assim, temos que detectar na cartografia do social onde essas forças conseguiram se viralizar e quais foram as válvulas que possibilitam sua infiltração no sistema político. Uma doença grave e repulsiva, como a própria figura de Eduardo Cunha, não deve obstaculizar um diagnóstico racional sobre suas causas. Isso significa olhar para um campo que normalmente os intelectuais uspianos desprezam, mas que foi absolutamente decisivo: a micropolítica.
Se observarmos, em linhas gerais e sem nenhuma pretensão "científica", o perfil desses deputados que horrorizaram a população na votação doimpeachment, vamos perceber o crescimento social de dois campos e a manutenção de um terceiro. O campo que se mantém é o do católico conservador, provavelmente influente na sua cidade natal como médico ou advogado, que se alinha com os valores tradicionais da classe média e, por consequência, é visceralmente anticomunista (associando, obviamente, o PT ao comunismo). Nada de novo aqui: esse segmento jamais deixou de existir e constitui o tradicional campo da direita política no Congresso. Em alguns casos, esse tradicional conservador ganha novos ares, mais "moderno" e "liberal", só que em sentido estritamente econômico. Ele alia-se ao modo norte-americano de fazer política, enveredando pelo macartismo e inspirado nos think tanks pró-mercado, mas em termos morais continua alinhado à "família brasileira", entendida como arranjo monogâmico, patriarcal e heteronormativo inspirado em valores religiosos cristãos.
O que vimos, no entanto, vai além disso. Temos agora uma ampla gama de deputados alinhados com as Igrejas neopentecostais, que são as responsáveis pelo maior "trabalho de base" no Brasil desde a década de 80 do século passado. Há uma imensa variação entre essas Igrejas hoje em dia no Brasil, mas pode-se dizer que via de regras aquelas que se interessam em ocupar espaços políticos institucionais estão marcadas por um certo ethos específico. A combinação entre o rigor e a disciplina moral, que possibilitam ao "batalhador" uma estabilidade em um contexto social desorganizado, como mostra Jessé Souza em seu trabalho sobre os "Batalhadores Brasileiros", somada à introdução da "teologia da prosperidade" — que enfatiza valores pró-mercado e coloca o "espírito do capitalismo" no âmbito da periferia— e ao componente mágico que combina a dádiva (a possibilidade de doar, do dispêndio sem retribuição, mas com valor social positivo no dízimo), a economia do luxo (com a ostentação, por exemplo, do Templo de Salomão, no qual estiveram presentes na inauguração, lembremos, Dilma e Alckmin) e o sincretismo vedado pelo cristianismo mais "teologizado" da Igreja Católica (com exorcismos, curas milagrosas, promessas impossíveis) possibilitam não apenas o "encantamento" de um mundo devastado pela pobreza e violência, mas um processo de individuação que configura uma forma-de-vida bem estruturada. Ao mesmo tempo, as lideranças pastorais tornam-se cada vez mais poderosas, independente das suas intenções serem genuínas ou nem tanto. Não por acaso o "poder pastoral" foi uma das formas investigadas por Foucault.
Por outro lado, podemos observar igualmente um setor que se alavanca nos últimos anos, identificados com valores também conservadores, mas com um certo ar agroboy, o Brasil country identificado com o "sertanejo universitário" que Viveiros de Castro vem descrevendo, mais ou menos sozinho, como um setor que avança cada vez mais no campo brasileiro:
Hoje o Brasil foi branqueado. Essa cultura country aí é uma mistura de cultura europeia com cultura americana, de grande carrão, 4x4, pick ups, rodeos, chapéus americanos, botas. Existe um projecto de transformar o Brasil num país culturalmente do hemisfério norte, seja Estados Unidos, seja essa Europa mais reaccionária. Porque estamos falando de colonos alemães que vieram do campesinato reaccionário, bávaro, pomerano, e dos camponeses italianos, que eram entusiastas do nazismo e do fascismo na II Guerra. Continuam sendo. O que tem de grupo de extrema-direita no sul do Brasil é muito. O foco da direita fascista, nazista é o Paraná e o Rio Grande do Sul. Então o Brasil é um país dividido entre um sul branco e o resto não branco, português, negro no litoral, índio no interior.
Os avanços desses setores foram amplamente subestimados por um erro metodológico-cognitivo da nossa esquerda: sua síndrome de gigantisco. O Brasil, nesse imaginário, é o "Brasil Grande", tão grande que consegue suportar a convivência das ideias de Kátia Abreu sobre a distribuição de terras, direitos indígenas, agrotóxicos, transgênicos e monoculturas sem que isso supostamente prejudique o "grande projeto" de inclusão social. Da mesma maneira, no Brasil dos "movimentos sociais" é normal conviver com fundamentalistas que pensam a democracia como teocracia, repudiando a laicidade do Estado e o respeito aos direitos fundamentais das pessoas que não compartilham seu credo religioso. A sobreposição da "maioria cristã" é entendida como a possibilidade de impor parâmetros pautados unicamente na religião — e no seu compartilhamento majoritário — sem respeito às minorias políticas que não compartilham esses valores e têm direito a ser respeitadas como cidadãs da mesma estatura (isso é tão óbvio que até me dói escrever).
A equivalência entre cidadania e poder de consumo, insistentemente repetida pela própria Presidenta Dilma Rousseff, despolitizou o próprio cerne da política, fazendo aquilo que a própria esquerda acadêmica critica no "neoliberalismo": tornar a economia uma narrativa absoluta, retirando a importância da política. Não é difícil perceber nisso o eterno ponto de encontro entre alguns setores do marxismo, do desenvolvimentismo e do neoliberalismo: sua ênfase absoluta na macroeconomia e desconsideração do nível micropolítico, das formas de subjetivação e do questionamento dos fins propriamente ditos a que tal "progresso econômico" irá nos conduzir. Por tudo isso, a esquerda governista considerou irrelevante enfrentar essas forças políticas, rifando seus aliados minoritários, gradualmente alimentando até a aliança com os reacionários. Nesse processo, o projeto político da esquerda foi gradualmente se paralisando em face dos constantes vetos reacionários até o ponto em que simplesmente desapareceu, reduzindo-se a um plano econômico baseado no crescimento induzido pelos "supercampeões nacionais".
Enquanto isso, e aqui vai a discordância com o citado Jessé Souza, a melhor explicação para a infiltração dessas duas novas formas de subjetivação na política institucional é mesmo a da patrimonialismo. A "válvula" que possibilitou esse crescimento é a "governabilidade" instituída no pacto pemedebista com o "Centrão" explorada por Marcos Nobre no seu "Imobilismo em Movimento". Nobre, porém, analisa apenas (e sem nenhum demérito à demarcação) o jogo da Realpolitik institucional, sem focar nas formas de subjetivação que compõem as bancadas agora definidas no arranjo "Bala, Boi e Bíblia", justamente o que há de mais reacionário no Brasil. Se ainda seguirmos Marcos Nobre ao entender as revoltas de Junho de 2013 comomanifestações "antipemedebistas", podemos compreender o realinhamento das forças políticas como uma combinação entre a estratégia de ocupação patrimonialista do "baixo clero", baseada no fisiologismo descarado até o nível criminal, e a forma-de-subjetivação reacionária que garante uma "base social" a tais parlamentares. O patrimonialismo e o personalismo servem de válvulas para a infiltração desses políticos corruptos e cínicos que se cacifam por meio de valores conservadores e pautas reacionárias, combinando o enfraquecimento da democracia com o antirepublicanismo e desprezo aos direitos fundamentais. A figura de Eduardo Cunha tem de ser entendida na sua força pela combinação desses dois elementos: de um lado, ele possibilita a passagem de pautas reacionárias que popularizam os deputados nas suas bases com subjetivação conservadora; de outro, ele representa, como um "Presidente do Sindicato", os parlamentares do baixo clero nos seus interesses mais mesquinhos que, diante do enfraquecimento do governo, podem passar com mais facilidade.
Se tudo isso é verdade, podemos visualizar que a guerra macropolítica é também um reflexo da micropolítica. O que 2013 afirmou, ao menos nos seus momentos iniciais, era a progressiva coesão (hoje esfacelada) de composições heterogêneas entre novas formas-de-vida, dos movimentos indígenas, passando pelo feminismo e movimento negro, até os movimentos por outro modelo urbano e político. O florescimento dessas lutas que, naquele momento, eram combinadas em arranjos heterogêneos, numa composição de múltiplas vozes em parte devedora dos próprios sucessos do lulismo (pela inclusão econômica e ações afirmativas, p.ex.), é que despertou uma reação agressiva do que há de mais reacionário no Brasil. Por outro lado, também o protesto por democratização do sistema político, com a demanda contra a corrupção e pelo aprofundamento da democracia que caracterizou aquele momento pode ser interpretada como uma ameaça ao status quo dessas bancadas fisiológicas e patrimonialistas, exigindo uma posição drástica — eleger uma "figura das sombras" para a Presidência da Câmara — a fim de paralisar esse processo.
Em outros termos, o que essa composição reacionária do Congresso representa é uma reação dialética ao avanço micropolítico de outras formas de subjetivação que também utilizou, e até com muito maior viralização, estratégias micropolíticas, conseguindo promover a constituição de uma base social sólida que se afirmou na lacuna despolitizante da "inclusão pelo consumo" promovida pelo ciclo lulista. Não é contra essa inclusão que se afirma, mas como sua contraparte política. Ao mesmo tempo, compõe um bloco de resistência agora mais coeso contra a real ameaça que o sistema político passou em 2013, transitando para a superfície do sistema um perfil que antes preferia atuar nas sombras, por meio das válvulas do patrimonialismo e da governabilidade.

9.4.16

A República da cobra: somente tolos ridicularizam discurso de ódio


Por Salah H. Khaled Jr
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Em nome do que é justo e correto. Em nome da família. Em nome da liberdade. Em defesa da sociedade. Em defesa da autonomia da vontade. Pela libertação do mal. Pela regeneração do corpo social.
Palavras de ordem. Lemas que agregam. Causas que unem estandartes e que afastam – pelo menos temporariamente – diferenças periféricas. Poucas coisas conseguem reunir um todo heterogêneo como um inimigo comum. A eleição de um inimigo – bem como a crença em um projeto que aponta para o eventual triunfo sobre ele – capacita para o sacrifício em prol do objetivo perseguido. Eventuais diferenças podem ser resolvidas no campo reorganizado de um tabuleiro no qual foi exorcizada a principal causa de dissenso. Em outras palavras, os vencedores podem decidir sobre a distribuição de espólios uma vez que a resistência aos seus esforços tenha evaporado.
Que a guerra em nome do bem comum seja empreendida: paz na Terra aos homens de boa vontade.
Não são poucos os massacres que a humanidade conheceu ao longo da história e que decorreram de ações de pessoas que sinceramente acreditavam que lutavam pelo que é justo. É incomum que alguém tenha uma imagem negativa de si mesmo: as pessoas constroem suas próprias justificativas para as escolhas que adotam e os inimigos que elegem. São heróis ou heroínas de suas próprias narrativas, que – não raro – capacitam práticas de extermínio que resultam em inomináveis tragédias.
Como o título indica, estou discutindo aqui a fala proferida por Janaína Paschoal no evento em defesa do impeachment que ocorreu na última segunda-feira, 4 de abril, na Faculdade de Direito da USP. É pouco provável que o leitor não tenha lido sobre o assunto, que foi retratado inúmeras vezes. Algumas análises ultrapassaram o limite da civilidade: atribuíram coloridos pejorativos com base na suposta "histeria" da professora e tentaram desacreditá-la com base nos clientes que já defendeu. Trata-se de uma linha de raciocínio que aposta em estereótipos machistas e que indiretamente ataca a própria advocacia, como se o fato dela ter sido advogada de acusados específicos a diminuísse enquanto pessoa. Não vejo como isso possa servir a qualquer propósito louvável. São análises equivocadas e estigmatizantes. Não tenho simpatia por elas e seguirei um caminho completamente diferente, como inclusive outros já fizeram. A crítica não deve sacrificar a dignidade acadêmica ou utilizar estratégias desonrosas para diminuir eventuais adversários, que não devem ser tidos como inimigos. Desnecessário dizer que a minha posição é de compromisso com a legalidade democrática e repúdio ao impeachment, como já deixei claro inúmeras vezes.
Não discutirei aqui a pessoa da professora, sua trajetória política e acadêmica ou qualquer detalhe nesse sentido, embora certamente mereça menção o fato dela ser uma das subscritoras do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Não irei me deter na teatralidade, ou seja, no aspecto performativo da fala e na intensidade dos gestos que a acompanharam. Logicamente, a manifestação se deu em moldes fundamentalmente distintos dos acadêmicos, enquanto o evento – embora abertamente de caráter político – foi estruturado como evento da academia e, logo, representativo do engajamento de parcela significativa de professores da casa. Mas este aspecto não é contemplado senão indiretamente nas breves linhas que compartilho aqui.
O que me parece digno de apreciação é o conteúdo do discurso e os sentidos que ele potencialmente funda. É sob este aspecto que é preciso discutir – pelo menos brevemente – a fala sobre a "República da cobra". Não porque com isso exista qualquer intenção de diminuição ou redução de quem efetivamente fez o discurso em questão, mas porque creio que ele merece atenção pelo que representou dentro de um contexto específico, que é o de choque entre forças favoráveis e desfavoráveis ao impeachment.
Parece óbvio que não é uma fala jurídica ou sequer acadêmica. Não há qualquer respeito pelos cânones que circunscrevem o espaço conceitual do pensamento jurídico, nem qualquer intenção de reivindicação do suporte de cientificidade que é típico de manifestações acadêmicas. Janaína Paschoal não fala como acadêmica naquele momento. Não fala como jurista. Fala como ativista política, para uma plateia que se mostra imensamente entusiasmada com o discurso. A receptividade da fala é enorme, como pode se perceber pelos inúmeros aplausos durante as pausas dramáticas que ocorrem entre um trecho e outro. Quem assiste ao vídeo em casa pode não gostar. Mas para quem estava lá, a sensação parece ter sido de que ela "ganhou o dia". E isso certamente merece atenção.
Poderíamos dizer – e muitos inclusive disseram – que a fala diminuiu a estatura acadêmica da professora em questão. Reconheço minha condição de ignorante e confesso que não conheço sua produção acadêmica. Mas sua trajetória como advogada é amplamente conhecida, inclusive por quem não advoga, como é meu caso. Com certeza é tentador para quem se encontra no espectro político oposto – na questão específica do impeachment –"caricaturizar" Janaína Paschoal, ou seja, despi-la de sua humanidade e grosseiramente retratar sua "perda de controle". Mas a fala não pode ser compreendida fora do contexto no qual foi proferida, sob pena de que a eventual análise não seja mais do que um exercício fútil de leviandade. Tentarei escapar dessa armadilha nos parágrafos restantes desta coluna.
O discurso proferido por Janaína carrega forte conotação moral e emotiva, complementada pelo emprego da bandeira do Brasil e a utilização de uma camisa amarela. Em vários momentos, ela fala como se não falasse por si mesma, mas pela nação: "nós somos muitos..." é um expediente típico de discursos construídos como artifícios de sedução. Eles visam o prazer do ouvinte: sua participação emocional e engajamento profundo em uma cerimônia de louvor à causa. Um olhar atento sobre o conteúdo da fala e a reação da plateia revela um ritual de celebração voltado para o frenesi coletivo, construído sob o signo da libertação da opressão: "eles derrubam um, levantam-se dez [...] dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens".
Janaína exerce um efeito de aproximação com o público presente que objetiva uma profunda identificação: individualidades devem se diluir em um amálgama maior de emancipação coletiva de consciências. Ela fala praticamente o tempo todo como quem reivindica a condição de porta-voz de uma coletividade: "nós não vamos baixar a cabeça...", e este é um dos muitos exemplos que caracterizam a estratégia adotada e amplamente bem sucedida.
A linguagem produz subjetividades, desqualificando não apenas os inimigos metaforicamente referidos, mas também seus aliados circunstanciais: "os professores de verdade querem mentes e almas livres" conforma um ardil particularmente performativo, por exemplo. O discurso pode soar inicialmente superficial, mas há uma clara intenção de conexão com um público-alvo específico, que consome uma dieta cultural que consiste basicamente no pensamento charlatão que acusa a academia de doutrinação marxista. A conexão produz filiação. Quem ouve se sente tocado, mesmo que inconscientemente.
Janaína está entre aliados e potenciais amigos com interesses comuns. Sabe para quem fala e o que muitos dos que estão lá querem ouvir. A pregação é para convertidos. Não é para consumo externo. Não há nenhuma necessidade de convencer opositores ou eventuais indecisos: o momento é de celebração de uma vitória que é tida como iminente, como é explicitado nos últimos instantes do discurso.
Despersonalizada discursivamente como representante de uma coletividade insurgente, é somente no final da fala que a própria Janaína "surge" referindo o pai, como heroína mítica que promoverá a libertação da nação e supostamente comandará uma legião enviada por Deus para "cortar as asas da cobra""nós queremos libertar o país do cativeiro de almas e mentes... não vamos abaixar a cabeça pra essa gente que se acostumou com discurso único... acabou a república da cobra!".
E assim ela encerra: a vitória está ao alcance da mão e com ela, o gozo: o equivalente político de um orgasmo anunciado.
Confesso que assisti várias vezes. Na primeira delas, fiquei estarrecido. Na segunda, senti medo e náuseas. Foi somente a partir da terceira vez que consegui analisar o conteúdo da fala com alguma objetividade.
O discurso efetivamente comemora o desfecho triunfal de uma verdadeira cruzada contra o mal. O oposto de Deus só pode ser o Diabo e é contra ele que Janaína se insurge. Não disponho de capacidade para intuir a subjetividade da professora. Mas se fosse preciso dar um palpite, diria que tenho certeza quase que absoluta de que ela realmente acredita no que diz. E precisamente por isso seu discurso é tão perigoso. Os lugares explorados na fala em questão remetem ao que de pior a história produziu em termos de demagogias políticas absorvidas pelas massas. Um discurso assentado em tais pilares tem um poder de mobilização social gigantesco. Ele apela para estruturas profundas de compreensão e, logo, produz subjetivamente um pronunciado efeito de adesão. E isso é particularmente perigoso quando a fala em questão é um discurso de ódio que convoca para o enfrentamento e sinaliza com a intensificação de conflitos sociais. O fato da emissora da mensagem não ter ciência de que profere discurso de ódio não atenua em nada seu conteúdo: apenas demonstra que o ódio pode falar através de pessoas, como muitas vezes falam as próprias estruturas, inclusive as míticas.
Nós nos acostumamos a desqualificar discursos voltados para o convencimento emocional. Muitas vezes eles são ridicularizados e não são percebidos como o que realmente representam: ameaças para uma cultura de respeito à alteridade. Uma tradição significativa do pensamento chega a considerar que discursos repletos de efeitos de sedução são algo alienígena perante as virtudes da racionalidade. Terrível engano. Discursos como o de Janaína transcendem os limites formais de lugares e padrões preestabelecidos: são fala, figura e gesto, dotados de uma racionalidade que lhes é muito própria e que complementa sistemas "racionais" de compreensão do mundo com modos afetivos de conhecimento. E é comum que modos afetivos tenham peso muito maior nas decisões do que o que costumamos chamar de "racionalidade". Não que a dicotomia moderna entre razão e emoção ainda mereça qualquer credibilidade.
Tolos são aqueles que taxam efeitos de sedução como simples irracionalidade e histeria. Tolos são aqueles que empregam estereótipos de misoginia como se agissem em defesa da democracia. Tolos são aqueles que subestimam a capacidade de discursos de ódio para conclamar as massas para a destruição da liberdade.
Quem sabe um pouco mais procurará compreender o adversário, que não deve ser visto como inimigo. A República pode não ser da cobra, mas a serpente do fascismo ameaça engolir a todos nós.
Bom fim de semana!
Salah H. Khaled Jr. é Doutor e mestre em Ciências Criminais (PUCRS), mestre em História (UFRGS). Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Escritor de obras jurídicas. Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013 e Ordem e Progresso: a Invenção do Brasil e a Gênese do Autoritarismo Nosso de Cada Dia, editora Lumen Juris, 2014 e coordenador de Sistema Penal e Poder Punitivo: Estudos em Homenagem ao Prof. Aury Lopes Jr., Empório do Direito, 2015.